A Revolução da Maria da Fonte - 170 anos

Primeira página do N.º 1 do Jornal “A Maria da Fonte”, publicado
em 3 de Janeiro de 1886
Causas de um levantamento popular

Paulo A. Ribeiro Freitas
Em 2016 cumprem-se 170 anos sobre a Revolução da Maria da Fonte e 130 sobre a fundação do jornal que dela quis tomar título.
Os primeiros levantamentos de 1846 aconteceram, inegavelmente, na Póvoa de Lanhoso. Foram esses episódios de contestação protagonizados por um conjunto de mulheres, não apenas da freguesia de Fontarcada mas de todo o concelho, que viriam a legar nome às ocorrências que a História de Portugal regista como a Revolução da Maria da Fonte. A mesma também foi, e é, apelidada de Revolução do Minho. Mas isso aconteceu por toda esta vasta região ter então seguido o exemplo da Póvoa de Lanhoso, levantando-se em armas e levando o país à sublevação e o governo à demissão, com fuga para Espanha do chefe do governo de então, Costa Cabral.
Muito se escreveu sobre os acontecimentos de 1846, cabendo, contudo, a este periódico, que ostenta o nome da heroína, desde a sua fundação em 1886, ter assumido a tarefa de contar, ou repor a verdade da mesma história, como um dos seus objetivos.
Desde 1846 que a Maria da Fonte e a ação das mulheres que protagonizaram a maioria dos episódios estão envoltas numa série de enredos, contribuindo para a sua transformação em símbolo nacional, enquanto refe-rência da luta por justiça e igualdade. Hoje, dado o vasto conjunto de estudos publicados, especialmente após a realização de um congresso sobre o tema em 1996, e da investigação que tem frutificado, é-nos possível documentar perfeitamente o essencial da ação e participação de cada um dos protagonistas nos acontecimentos de há 170 anos – das mulheres com nomes próprios às autoridades com competências e funções bem definidas por lei; dos titulares de cargos públicos, eleitos ou nomeados, em  exercício e com participação nos episódios aos dos próprios membros das elites locais, enquanto “observadores” interessados.
Justifica-se, pois, 130 anos volvidos sobre a fundação do jornal ‘Maria da Fonte’, que ele mesmo possa disponibilizar o conhecimento existente, de forma idêntica à que utilizou para tentar clarificar dúvidas ou interpretações, corrigindo muito do enredo na informação que em 1885 Camilo Castelo Branco dera à estampa, e sobejamente veiculada a todo o país com a publicação do seu livro cujo título era o da virago povoense de 1846.
Tentaremos, aqui, explicar os principais contornos dos episódios que enformaram a Revolta da Maria da Fonte; o porquê de acontecerem na Póvoa de Lanhoso; o seu desenvolvimento em Revolução; os nomes das mulheres que protagonizaram os acontecimentos; a reação das autoridades e os principais contributos na construção do símbolo em que se transformou. Esta divulgação apenas no formato difere do folhetim com que Azevedo Coutinho, auxiliado por Martins de Oliveira, deu a público nas páginas deste mesmo jornal entre janeiro e agosto de 1886, decisivo na perceção do grande volume de factos conhecidos e hoje documentalmente confirmados.

Preâmbulo

As problemáticas subjacentes à história da Maria da Fonte são contemporâneas dos confrontos e das motivações dos levantamentos, aparentemente provocados pela aplicação das leis da saúde (que impediam a continuação da prática dos enterramentos dentro das igrejas), à recognição de uma líder para os motins. A não identificação de uma mulher com o nome próprio Maria da Fonte, a quem as revoltosas da Póvoa de Lanhoso davam vivas, e que as autoridades locais tentavam identificar e capturar, iria somar uma áurea romântica à ação daquelas mulheres, decididas a colocar termo aos desmandos que todos sentiam, independentemente das razões concretas de cada um, fosse qual fosse a sua condição social, poder económico, fervor religioso ou convicção política.
Se as dificuldades sentidas pelas autoridades locais ganharam relevância em relatórios oficiais, de quem a Maria da Fonte “se havia escondido”, ou ainda mais “épico”, pelo facto das mulheres presas nos episódios assim se identificarem (escondendo a sua própria identidade, ou daí tentando retirar “benefícios”), logo ganharam envolvência regional e que a imprensa liberal setembrista fez caricaturar, transportando-a para uma dimensão nacional, pela soma das particularidades incomuns a si associadas – a luta feminina, a ruralidade das intervenientes, a política no mundo do campesinato – e por quem todos nutriram simpatia na afronta à prepotência do poder instituído, numa sociedade em profunda transformação. 
A popularidade da Maria da Fonte ganhou expressão no vasto cancioneiro interpretado nas ruas, nas leituras políticas e na simplicidade da força popular, as quais contrastaram com o recurso à ridicularização, como exemplarmente aconteceu com António Feliciano de Castilho na ‘Crónica certa e muito verdadeira…’. Contudo, a dimensão maior da glorificação é conseguida através do romantismo capaz de lhe votar um hino, interpretado logo no rescaldo dos levantamentos.
Se as mulheres regressaram às suas casas e às suas lidas logo após a substituição do administrador do concelho (ainda em 1846), a verdade é que o símbolo já era frequentemente evocado em associação a valores como igualdade, justiça ou coragem por homens como Almeida Garrett ou Oliveira Martins.
Volvidos 40 anos a honra e a dignidade das gentes da Póvoa de Lanhoso iriam ser abaladas com uma publicação de Camilo Castelo Branco. O mestre de Ceide, que já anteriormente se tinha inspirado na Póvoa de Lanhoso (em romances como ‘O Demónio do Ouro’, a ‘Brasileira de Prazins’ ou em algumas das “Novelas do Minho”…), invariavelmente com recurso a informações e escritos facultados por Ferreira de Mello e Andrade, da Casa da Agras, publicou em 1885 a sua ‘Maria da Fonte’. Tendo como objetivo refutar os ‘Apontamentos…’ do Pe. Casimiro José Vieira (o General das 5 Chagas, de Vieira do Minho), demarca o seu pensamento político e sociológico de outros vultos da Geração de 70, numa espécie de ensaio sobre o liberalismo português, tudo ceifando com a mordacidade caraterística do seu génio literário.
Em a ‘Maria da Fonte’, de Camilo, onde o relato romanceado da génese é uma transcrição literal dos escritos de Ferreira de Mello e Andrade, a versão que diz ser a mais credível dos acontecimentos, são afinal palavras do então administrador do concelho, que opta por não alterar (talvez pelo autor haver já falecido, em 1881), transportando para a dimensão nacional a visão romanesca da Maria da Fonte e das mulheres do Minho, e do que apelida de “rodeiro dos engeitados da Póvoa…”
Perante aquilo que considera uma afronta, a Póvoa de Lanhoso irá responder, como veremos, pelas palavras de Azevedo Coutinho, nas páginas de um jornal fundado e renomeado com esse objetivo particular: ‘A Maria da Fonte’.