Cem anos de República (17)

O silvo da locomotiva
da emigração e falência

Deixamos para trás – como preciosa herança de D. Maria II, Mouzinho da Silveira ou Barjona de Freitas - três décadas de grande ascensão industrial. Mas Portugal é assim: o período de ouro degenera em crise e, neste caso, fomentou a emigração para o Brasil e alimentou o levantamento republicano. Os românticos Almeida Garrett, Alexandre Herculano ou Júlio Dinis deram-nos um intervalo de crescimento e de sonhos que abriu as portas à turbulência anunciada por Camilo cuja cegueira iluminava o realismo de Eça de Queirós, aconchegado nas Farpas de Ramalho Ortigão. O antigo regime dos frades e dos nobres dava lugar à sociedade dos barões. Almeida Garret diz-nos isso mesmo em “As viagens da minha terra” quando escreve: “frades… frades… Eu não gosto de frades.”
No entanto, “é muito mais poético o frade que o barão” – prosseguia o fundador do romantismo português que se interrogava: “como havemos nós de matar o barão?” porque os barões “são a moléstia deste século, não os jesuítas”. Estas palavras a traduzem a afirmação dos burgueses na sociedade portuguesa bem descritos em “A morgadinha” de Júlio Dinis em que o professor primário, o médico e o padre constituem a oligarquia política corrupta que falsifica os resultados eleitorais perante a profunda ignorância das maiorias rurais e a contra-ofensiva do clero regular.
É verdade que Júlio Dinis valoriza o trabalho agrícola n’”Os Fidalgos da Casa Mourisca” mas todo o seu ideário acaba vergado ao caudal da obra do temperamental Camilo Castelo Branco cuja obra retrata com cruel simplicidade as últimas prepotências de uma sociedade ainda feudalizada.

Revolução cultural

A persistência dos morgadios e velhos preconceitos e classe no Entre Douro-e-Minho são eloquentemente ridicularizados em grande parte da obra do Cego de Seide com a antipatia ge-nética ao Brasileiro, ao espírito burguês, à caça ao lucro e do dote, com uma vi- da que nenhum outro ficcionista voltou a captar (cf. António José Barreiros, in História da Literatura Portuguesa, Vol. II, Ed. Pax, Braga, p-406). Quase todas as grandes obras de Camilo – de sarcasmo social – se passam no período entre as Invasões francesas e a governança de Mouzinho da Silveira, que desferiu um golpe fatal em muitos usos e costumes dependentes do morgadio, as classes sociais altas e os seus vínculos.
As mudanças no ensino primário e secundário, com Passos Manuel, enriquecido com escolas superiores, as transformações da sensibilidade nas artes (veja-se o Palácio do Buçaco ou o Campo pequeno) de que são expoentes “O Desterrado” de Soares dos Reis ou “A Viúva” de Teixeira Lopes, o surgir de grandes pintores (como Alfredo Keill e Visconde de Menezes), o aparecimento de poetas como Teixeira de Pascoaes são consequência de um período de ouro que é interrompido nas últimas décadas do Século XIX e precipita a República...