Uma família de Valdemil

Uma viagem às raízes
do terrorista morto em Paris

“O homem é ele próprio e as suas circunstâncias”, assim teria dito o filósofo espanhol José Ortega y Gasset.
Valdemil, Portela e S. Pedro, lugares muito populosos, albergavam gente de muito trabalho e sacrifício; em geral era gente muito pobre, famílias grandes (muitos filhos), habitações miseráveis e acanhadas, pessoas que viviam do que ganhavam no dia a dia, sem saber como seria o de amanhã: caseiros, jornaleiros, pedreiros, trolhas, e alguns outros ofícios como sardinheiras, sapateiros, barbeiros… Mas eram famílias de boa índole, pacíficas, honestas e honradas (comparativamente ao grau de exploração, injustiça e usurpação de direitos, e do respeito devido a cada pessoa, de que eram vítimas por parte dos que mandavam e tinham algum poder, terras e dinheiro).
Entrando no lugar, logo depois dos campos cultivados (em tempos idos), junto à fonte, morava o sr. Francisco Estêvão Fernandes, artista e bombeiro voluntário, conhecido pelo cognome de ‘Pronto’, com a sua esposa Dona Esperança Gomes, da família dos Geadas da Vila da Póvoa. Dona Esperança era uma santa mulher, carinhosa e sofredora. Este casal teve duas filhas, a Natália e a Alice. Esta última foi das primeiras mulheres a ingressar na polícia portuguesa (PSP). Prestou serviço no Porto, casou, tem filhos e já está reformada.
Em casa alugada, aqui ou ali, mas sempre no lugar de Valdemil, residia o casal dos ‘Parlapiteiros’, originários da região do Porto, que tinha vindo para as terras de Lanhoso na altura das grandes empreitadas aqui realizadas; mas, anteriormente, o casal – Albano Moreira e Aurora Domingues – tinha estado em Espanha, onde lhes nasceram os três filhos: o Manolo (Manuel), o Canduxo (Cândido) e a Guanita (Joana), os dois últimos com família (filhos e netos) aqui na Póvoa de Lanhoso. Albano era pedreiro e Aurora Domingues foi jornaleira durante muitos anos nas quintas do padre Zé Dias.
A Natália, filha de Dona Esperança, e o Manolo, filho de Dona Aurora, casaram ainda muito jovens. Manolo era um bom pedreiro, mas bebia e fumava bastante. Teve sempre uma saúde frágil (era de compleição débil), mas era valente e trabalhador. O salário foi sempre escasso (tal como o ganho que os trabalhadores revertiam para os patrões nunca foi suficiente para estes darem azo às suas sempre legítimas aspirações de comprarem mais terras, mais uma casa e mais regalias). Manolo, que era um homem informado, inteligente e bom conversador, não conseguiu fugir ao fado de, tal como outros homens de Valdemil, exercer violência doméstica sobre a esposa. Era uma triste sina, que tornava a vida das famílias pobres ainda mais amarga. Natália, a esposa, era uma mulher bonita, lutadora, desembaraçada, mulher-mãe muito amada. Os filhos (cinco) foram nascendo e ela sempre a trabalhar. Era sardinheira. Vendia o peixe que o seu tio – António Sardinheiro, da vila – ia buscar todos os dias a Matosinhos. Vendia na feira da vila (às quintas-feiras), e, nos outros dias, carregava o tabuleiro cheio à cabeça e fazia o giro da vila até Valdemil, passando pelo Horto.
Um dia, no ano de 1967, toda a vila da Póvoa viu a Natália a passar numa correria aflita, avenida abaixo em direcção ao Hospital António Lopes. Descalça, esbaforida, de coração amargurado, foi dar com o seu homem já morto. O Manolo tinha saído de casa para trabalhar e na pedreira sentiu-se mal e foi levado para o hospital. Ficaram cinco filhos: o Francisco, o António, a Lúcia, a Jacinta e a Céu. A fotografia que acompanha  este texto mostra todos os filhos da Natália e do Manolo, quando a mãe, já viúva, deixara as crianças entregues à avó paterna Aurora e partiu clandestinamente para França, porque aqui, em Portugal, sozinha, já não conseguia sustentar a família. Na imagem citada (à frente) vêem-se ainda dois rapazes mais pequenos: um, o da esquerda, é o Marcelino (primo dos outros), filho da Guanita e do Amadeu de Sá, conhecido pela alcunha de ‘Razão’ (pedreiro, antigo emigrante e grande caçador de raposas). Este Marcelino parece que está, ou esteve, ligado ao Clube de Caçadores da Póvoa de Lanhoso. O outro miúdo não sei quem é. A menina da direita, sorridente e linda, é a mais velha das filhas, a Lúcia. A senhora mais velha é a avó Aurora, falecida em 1988, no Pinheiro, na casa da filha Guanita.
A mãe Natália, depois de ter a sua vida minimamente organizada em França, veio buscar os filhos. Ela chegou a comprar um terreno em Valdemil para construir uma casa, mas acabou por vendê-lo. Sei que voltou a casar. Com os dois filhos mais velhos, tenho mantido algum contacto, mas nunca mais voltei a ver as meninas, depois que saíram de Valdemil. A família do casal Natália e Manolo era vizinha da minha Mãe em Valdemil, porta com porta, e foram sempre bons vizinhos.
Este é o meu testemunho, de amizade, consideração e respeito, sobre a família de quem se falou na última semana.

Nota: na última semana falou-se desta família, nos jornais, nas televisões e nas rádios, a propósito de um filho de Lúcia Fernandes Moreira que participou e morreu nos atentados de Paris na noite de 13 deste mês. Esse jovem, filho da Lúcia e do seu marido de origem árabe, era partidário do Jiadismo, corrente que defende a chamada ‘guerra santa’, como forma de tentar impor a sua concepção religiosa denominada Jiade (ver Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa).