Primeira página do N.º 1 do Jornal “A Maria da Fonte”, publicado em 3 de Janeiro de 1886 |
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Paulo A. Ribeiro Freitas |
Os primeiros levantamentos de 1846 aconteceram, inegavelmente, na Póvoa de Lanhoso. Foram esses episódios de contestação protagonizados por um conjunto de mulheres, não apenas da freguesia de Fontarcada mas de todo o concelho, que viriam a legar nome às ocorrências que a História de Portugal regista como a Revolução da Maria da Fonte. A mesma também foi, e é, apelidada de Revolução do Minho. Mas isso aconteceu por toda esta vasta região ter então seguido o exemplo da Póvoa de Lanhoso, levantando-se em armas e levando o país à sublevação e o governo à demissão, com fuga para Espanha do chefe do governo de então, Costa Cabral.
Muito se escreveu sobre os acontecimentos de 1846, cabendo, contudo, a este periódico, que ostenta o nome da heroína, desde a sua fundação em 1886, ter assumido a tarefa de contar, ou repor a verdade da mesma história, como um dos seus objetivos.
Desde 1846 que a Maria da Fonte e a ação das mulheres que protagonizaram a maioria dos episódios estão envoltas numa série de enredos, contribuindo para a sua transformação em símbolo nacional, enquanto refe-rência da luta por justiça e igualdade. Hoje, dado o vasto conjunto de estudos publicados, especialmente após a realização de um congresso sobre o tema em 1996, e da investigação que tem frutificado, é-nos possível documentar perfeitamente o essencial da ação e participação de cada um dos protagonistas nos acontecimentos de há 170 anos – das mulheres com nomes próprios às autoridades com competências e funções bem definidas por lei; dos titulares de cargos públicos, eleitos ou nomeados, em exercício e com participação nos episódios aos dos próprios membros das elites locais, enquanto “observadores” interessados.
Justifica-se, pois, 130 anos volvidos sobre a fundação do jornal ‘Maria da Fonte’, que ele mesmo possa disponibilizar o conhecimento existente, de forma idêntica à que utilizou para tentar clarificar dúvidas ou interpretações, corrigindo muito do enredo na informação que em 1885 Camilo Castelo Branco dera à estampa, e sobejamente veiculada a todo o país com a publicação do seu livro cujo título era o da virago povoense de 1846.
Tentaremos, aqui, explicar os principais contornos dos episódios que enformaram a Revolta da Maria da Fonte; o porquê de acontecerem na Póvoa de Lanhoso; o seu desenvolvimento em Revolução; os nomes das mulheres que protagonizaram os acontecimentos; a reação das autoridades e os principais contributos na construção do símbolo em que se transformou. Esta divulgação apenas no formato difere do folhetim com que Azevedo Coutinho, auxiliado por Martins de Oliveira, deu a público nas páginas deste mesmo jornal entre janeiro e agosto de 1886, decisivo na perceção do grande volume de factos conhecidos e hoje documentalmente confirmados.
Preâmbulo
As problemáticas subjacentes à história da Maria da Fonte são contemporâneas dos confrontos e das motivações dos levantamentos, aparentemente provocados pela aplicação das leis da saúde (que impediam a continuação da prática dos enterramentos dentro das igrejas), à recognição de uma líder para os motins. A não identificação de uma mulher com o nome próprio Maria da Fonte, a quem as revoltosas da Póvoa de Lanhoso davam vivas, e que as autoridades locais tentavam identificar e capturar, iria somar uma áurea romântica à ação daquelas mulheres, decididas a colocar termo aos desmandos que todos sentiam, independentemente das razões concretas de cada um, fosse qual fosse a sua condição social, poder económico, fervor religioso ou convicção política.
Se as dificuldades sentidas pelas autoridades locais ganharam relevância em relatórios oficiais, de quem a Maria da Fonte “se havia escondido”, ou ainda mais “épico”, pelo facto das mulheres presas nos episódios assim se identificarem (escondendo a sua própria identidade, ou daí tentando retirar “benefícios”), logo ganharam envolvência regional e que a imprensa liberal setembrista fez caricaturar, transportando-a para uma dimensão nacional, pela soma das particularidades incomuns a si associadas – a luta feminina, a ruralidade das intervenientes, a política no mundo do campesinato – e por quem todos nutriram simpatia na afronta à prepotência do poder instituído, numa sociedade em profunda transformação.
A popularidade da Maria da Fonte ganhou expressão no vasto cancioneiro interpretado nas ruas, nas leituras políticas e na simplicidade da força popular, as quais contrastaram com o recurso à ridicularização, como exemplarmente aconteceu com António Feliciano de Castilho na ‘Crónica certa e muito verdadeira…’. Contudo, a dimensão maior da glorificação é conseguida através do romantismo capaz de lhe votar um hino, interpretado logo no rescaldo dos levantamentos.
Se as mulheres regressaram às suas casas e às suas lidas logo após a substituição do administrador do concelho (ainda em 1846), a verdade é que o símbolo já era frequentemente evocado em associação a valores como igualdade, justiça ou coragem por homens como Almeida Garrett ou Oliveira Martins.
Volvidos 40 anos a honra e a dignidade das gentes da Póvoa de Lanhoso iriam ser abaladas com uma publicação de Camilo Castelo Branco. O mestre de Ceide, que já anteriormente se tinha inspirado na Póvoa de Lanhoso (em romances como ‘O Demónio do Ouro’, a ‘Brasileira de Prazins’ ou em algumas das “Novelas do Minho”…), invariavelmente com recurso a informações e escritos facultados por Ferreira de Mello e Andrade, da Casa da Agras, publicou em 1885 a sua ‘Maria da Fonte’. Tendo como objetivo refutar os ‘Apontamentos…’ do Pe. Casimiro José Vieira (o General das 5 Chagas, de Vieira do Minho), demarca o seu pensamento político e sociológico de outros vultos da Geração de 70, numa espécie de ensaio sobre o liberalismo português, tudo ceifando com a mordacidade caraterística do seu génio literário.
Em a ‘Maria da Fonte’, de Camilo, onde o relato romanceado da génese é uma transcrição literal dos escritos de Ferreira de Mello e Andrade, a versão que diz ser a mais credível dos acontecimentos, são afinal palavras do então administrador do concelho, que opta por não alterar (talvez pelo autor haver já falecido, em 1881), transportando para a dimensão nacional a visão romanesca da Maria da Fonte e das mulheres do Minho, e do que apelida de “rodeiro dos engeitados da Póvoa…”
Perante aquilo que considera uma afronta, a Póvoa de Lanhoso irá responder, como veremos, pelas palavras de Azevedo Coutinho, nas páginas de um jornal fundado e renomeado com esse objetivo particular: ‘A Maria da Fonte’.